sexta-feira, 20 de junho de 2008

A gente so leva da vida, a vida que a gente leva! Devagar se vai ao longe

Pelos quatro cantos do planeta, movimentos que pregam a desaceleração da vida moderna apontam alternativas para quem quer trabalhar, comer, criar e viver a vida sem pressa alguma

Trabalho demais, agenda cheia, internet, iPod, celular e carros que chegam a mais de 200 km/h transformaram o homem moderno numa espécie de Coelho Branco de "Alice no País das Maravilhas". Sempre apressado, eternamente atrasado. E doente. Literalmente. A velocidade, símbolo do desenvolvimento tecnológico e de um modo de produção e consumo cada vez mais vorazes, criou um sentimento de urgência que poucos conseguem administrar. Se é que conseguem mesmo. O resultado é um novo mal que é a cara do nosso tempo: a doença da correria (hurry disease), uma espécie de superestresse que foi descrito pelo médico americano Larry Dossey como uma resposta ao fato do nosso relógio interno ter virado o relógio de pulso e o despertador.
Mas há quem pense diferente. E reaja a esse excesso. Em todo o mundo, grupos mais ou menos organizados vêm criando maneiras de diminuir o ritmo, de abrir mais espaço para o lazer e a família.
Filosofia do devagarIniciativas que privilegiam o bem-estar, a simplicidade, a tradição local, o resgate da história e a hospitalidade começam a pipocar pelo globo. "Esse é o começo de uma revolução cultural, uma mudança radical na forma como vemos o tempo e como lidamos com a velocidade e a lentidão. Significa colocar qualidade antes de quantidade. É uma espécie de 'filosofia do devagar', onde se percebe que nem sempre a rapidez é a melhor maneira de fazer as coisas", disse a Galileu Carl Honoré, autor do livro "Devagar", recentemente lançado no Brasil.
Um dos centros dessa nova forma de pensar é a Sociedade para a Desaceleração do Tempo, fundada há 15 anos na Alemanha e que reúne cerca de mil integrantes - de filósofos a advogados e músicos - para discutir e estudar a relação do homem com o tempo. "A principal fonte da aceleração é o domínio de um sistema econômico que 'sugere' às pessoas a chance de preencher suas vidas com ajuda da tecnologia. Desacelerar parece dar a muita gente a sensação de estar perdendo o pouco tempo que lhes resta. Já a rapidez nos dá a sensação de controle e poder. Nosso grupo é uma forma de estimular a reflexão coletiva sobre o fenômeno moderno da aceleração, e a própria reflexão é uma forma de desacelerar", diz Michaela Schmoczer, professora da Universidade de Klagenfurt, na Áustria, e membro da Sociedade. Ela prossegue: "Além da atividade intelectual, tentamos intervir na comunidade de forma bem humorada. Vendemos cartões de crédito do tempo, relógios que só têm o ponteiro das horas, moedas de 'uma hora'. Se você separar um tempo de sua vida para refletir, terá uma vida mais rica e será capaz de acelerar e desacelerar de forma mais consciente".
Ao que parece, o Homo velox anda pensando seriamente em voltar a ser Homo sapiens.

Simplicidade voluntária, felicidade garantida

A Austrália é o maior exemplo de que é possível trocar o excesso pela simplicidade. Nos últimos 12 anos, 23% dos adultos entre 30 e 59 anos, perto de 2 milhões de pessoas, decidiram ganhar e consumir menos e optaram por um estilo de vida simples e com mais qualidade. O downshifting ou "simplicidade voluntária" vem crescendo em todo o mundo e já conquistou até mesmo ingleses e americanos, workaholics por excelência. "No Reino Unido as pessoas são cada vez mais pressionadas a fazer parte de uma sociedade materialista e superconsumista. Antes que percebam, já estão gastando o que têm e o que não têm", diz Tracey Smith, fundadora da Semana Australiana do Downshifting. Para outra ativista do país, Mitra Ardon, da organização Downshifting Downunder, o ponto central dessa nova forma de viver é mudar a relação com o dinheiro. "O objetivo é deixar de ser dominado por ele e buscar qualidade de vida, seja o que isso signifique para você."
Nos Estados Unidos, Cecile Andrews, diretora do projeto Círculos da Simplicidade, vem procurando uma forma de mudar o que ela chama de "crença" do americano no dinheiro, em outras palavras, o sentimento de que ele nunca tem o suficiente. "Nosso grupo reúne pessoas que tentam ajudar os outros a prestarem atenção em suas vidas e se perguntarem se há um jeito mais satisfatório de viver", diz Cecile.
Segundo a australiana Tracey Smith, não é preciso sequer sair de casa para viver de forma simples. O estilo de vida pode ser experimentado mesmo entre quatro paredes. "O downshifting não é uma ciência exata, mas pode oferecer uma utopia imediata. Nem todo mundo consegue viver com ganhos limitados. O importante é analisar se não há excesso de gastos em sua vida. Se você chega à raiz do problema e percebe os benefícios claros de desacelerar, você tem mais chance de ter sucesso e ser feliz", conclui Tracey.

Os Noés do sabor e as cidades em câmera lenta
Tudo começou como um movimento contra a invasão da fast-food na Itália, em 86. Liderados pelo jornalista Carlo Petrini, que temia que a força das grandes corporações ameaçasse a cultura tradicional, a "resistência" se armou de rolos de macarrão e fundou o movimento slow food (comida lenta). Nos primeiros 12 meses de existência, tinha apenas 500 membros. Hoje são 83 mil, espalhados ao redor do mundo, inclusive o Brasil.
O movimento não só cresceu como amadureceu e expandiu suas áreas de atuação. Hoje os esforços estão concentrados na "Arca do Gosto", um projeto patrocinado pela Fundação Slow Food para a Defesa da Biodiversidade e que tem como objetivo salvar espécies que corriam o risco de desaparecer, muitas delas ligadas a receitas tradicionais. "No Brasil, a Arca protege quatro espécies: o guaraná, plantado pela tribo Sateré-Mawé da Amazônia, o palmito jussara, da Mata Atlântica, o umbu, do semi-árido, e o feijão canapu, que cresce no Maranhão e Piauí", conta Margarida Nogueira, que introduziu o movimento no Brasil.
Salve a manga-rosaSegundo ela, o slow food hoje foca um tripé, formado por pesquisadores, produtores e consumidores - entre os últimos, o chefe de cozinha e o consumidor propriamente dito. "Ao salvar as espécies, não só ajudamos o pequeno produtor, que sofre com a concorrência das grandes corporações, mas salvamos receitas e tradições que corriam o risco de sumir." O Brasil tenta incluir na Arca uma série de outras espécies, como a manga-rosa e o queijo-de-minas. "Vale lembrar que a produção do queijo-de-minas autêntico requer o uso do leite cru, que traz para nosso paladar as características do local onde é feito, como o clima, a terra, o gado, a pastagem, num processo de preservação de culturas gastronômicas regionais", relata Homero Vianna, do Slow Food Minas Gerais.
A Itália também foi palco do nascimento de outro movimento, o Città Slow (cidade lenta). Ele foi inspirado no conceito das comunas italianas do século 12, cidades onde os homens viviam juntos em harmonia. A Itália hoje concentra 60 delas e outras 20 se espalham por países como Inglaterra e Portugal. Não é fácil ganhar o título de cidade lenta, já que poder público e sociedade devem assumir um compromisso conjunto de zelar pela tradição, meio ambiente e educação locais.
Outras iniciativas também têm buscado transformar o espaço urbano num lugar mais aprazível, onde os bairros e as vias expressas são repensados para dar mais espaço ao pedestre e menos aos carros. É o chamado Novo Urbanismo. "Vários dos princípios aplicados a cidades como Londres, por exemplo, vieram do Città Slow. Em Vancouver, o sistema viário sofreu várias transformações para tirar espaço dos carros e estimular a caminhada e o uso de bicicletas", relata o escritor Carl Honoré. Alguns grupos fazem verdadeira campanha pela redução da velocidade dos carros nas cidades, como é o caso do Slower Speeds Iniciative (iniciativa para velocidades menores), do Reino Unido. "Acreditamos que a redução da velocidade vai encorajar a caminhada e o ciclismo, aumentar a segurança, reduzir a poluição, o barulho e o estresse", diz Paige Mitchell, coordenador do projeto.
Mas uma das idéias mais ousadas e bem humoradas veio da cabeça de dois designers franceses, que lançaram um manifesto e um desafio às montadoras apresentando o projeto de um carro devagar. "Percebemos que a velocidade e a potência ditaram o design dos carros no último século. Por isso decidimos mudar esses parâmetros, criando um projeto para a vida real. Um carro que pudesse rodar em Paris a 15 km/h. A vida certamente iria mudar", conclui Olivier Peyricot, um dos designers que criaram o projeto.

Em busca do tempo (livre) perdido

Tempo é sinônimo de dinheiro desde que a Revolução Industrial mudou para sempre os meios de produção. O resultado acabou sendo de certa forma nefasto para o trabalhador. Hoje se passam horas demais no ambiente de trabalho e horas de menos com a família. Até as férias foram minguando. "O excesso de trabalho é um fenômeno global. O mercado global e a tecnologia de comunicação instantânea fizeram do trabalhador um escravo do relógio. E nós nos tornamos escravos dessa tecnologia. Somos HDs com cabelo. É importante colocar limites, caso contrário, o trabalho dominará nossas vidas", diz Joe Robinson, autor do livro "Work to Live" ("Trabalhar para Viver", ainda inédito no Brasil).
Em todo o mundo, uma série de organizações tem buscado colocar a redução e a flexibilização do horário de trabalho e o aumento do período de férias na pauta política de seus países. "Eu inventei o termo 'desordem do déficit de férias' com o intuito de chamar a atenção para a perda do período de descanso nos Estados Unidos. Nós temos as menores férias do mundo industrializado: 8,1 dias depois de um ano de trabalho e 10 dias depois de 3 anos", acrescenta Robinson, também fundador da ONG Work to Live.
Epidemia de estresseO grupo foi criado em 2000, depois de Robinson "ficar cansado de tanto escrever" sobre o assunto. "Estamos trabalhando em conjunto com outras organizações, como a Take Back your Time (Pegue seu Tempo de Volta), para tentar impedir o avanço da epidemia de excesso de trabalho. Uma das estratégias é encontrar aliados na indústria do turismo para fazer lobby no Congresso. Vários deles já estão fazendo campanha por férias maiores. A mais bem-sucedida, acho, é a do hotel Universal Orlando, cujos comerciais passam no horário nobre da TV. Um deles mostra um grupo de donos de cemitérios agradecendo aos americanos por darem trabalho para os agentes funerários", conta ele.
No Canadá, entidades como o "32 Horas" - ativo entre 95 e 2000 - lutaram pela redução da jornada de trabalho para 32 horas semanais e conseguiram alguns resultados reais. "Um exemplo é a empresa Powell River, onde os empregados tiveram uma redução de 42 horas para 40 horas. Depois, a jornada foi diminuída para 37 horas para que os amigos desempregados voltassem a ter uma posição. No começo, muitos não gostaram porque tiveram seus salários reduzidos, mas hoje eles têm muito mais tempo livre e sabem que ajudaram a criar empregos na comunidade", afirma Anders Hayden, autor do livro "Sharing the Work, Sparing the Planet" ("Dividindo o Trabalho e Poupando o Planeta", não lançado por aqui).
Outros grupos lutam para que os trabalhadores tenham tempo para suas famílias, como é o caso do Putting Family First (Colocando a Família em Primeiro Lugar) e o Timing for Family (Tempo para a Família). "Mais do que organizações políticas, esses são grupos de pessoas que apelam para que os pais tentem encontrar mais tempo para suas famílias e filhos", relata William Doherty, da Faculdade de Ecologia Humana da Universidade de Minnesota.

Criatividade à velocidade zen
Os movimentos culturais também foram impregnados pelo espírito da lentidão. O design devagar, por exemplo, foi concebido em 2002 para tentar recuperar um bem-estar que foi sendo perdido. "Eu sempre achei que o design deve ter sua própria filosofia e código ético e não só adotar o ponto de vista do cliente. O design devagar leva as pessoas a entenderem que há outros metabolismos, ritmos, experiências e significados, privilegiando a importância das culturas, materiais e pessoas", explica Alastair Fuad-Luke, criador do conceito e membro do Slow Lab (laboratório lento). Baseada em Nova York, a organização não tem fins lucrativos e funciona como uma espécie de ponto de convergência para idéias e projetos de vanguarda que respeitem a sustentabilidade e a filosofia devagar. "O fato dos integrantes do Slow Lab serem de todo o planeta mostra que a lentidão é um conceito que 'pega' em qualquer lugar", afirma Carolyn Strauss, fundadora do laboratório.
Na música, os princípios do devagar se infiltraram no erudito e na eletrônica. Um dos membros da Sociedade pela Desaceleração do Tempo criou um projeto cujo objetivo é a busca de um novo "andamento". O pianista alemão Uwe Kliemt defende que, ao longo dos anos, os músicos foram gradualmente aumentando a velocidade com que tocavam obras clássicas. Fundador do site Tempo Giusto (www.tempogiusto.de) e membro da Sociedade para a Desaceleração do Tempo, Kliemt justifica-se ao citar uma carta de 1876, assinada por Franz Liszt. Nela, o compositor dizia a um amigo que levava quase uma hora para executar a Sonata "Hammerklavier", de Beethoven. Segundo o alemão, hoje alguns pianistas a tocam em 35 minutos. Para corrigir distorções como essa, Kliemt faz palestras explicativas e concertos-demonstração pela Europa.
Concerto de 639 anosNa Alemanha, uma igreja na cidade de Halberstadt abriga um órgão onde está sendo executada desde 2001 a peça mais longa de toda a história. Escrita pelo compositor experimental americano John Cage, a peça "As Slow as Possible" ("Tão Lento quanto for Possível") vai levar 639 anos para chegar ao fim. A cada 18 meses, um organista vai até a igreja para tocar uma única nota.
Já o duo Scratch 'N Sniff, formado pelas alemãs Cassis Birgit Staudt e Serena Jost, faz música eletrônica em ritmo lento. Aderindo ao movimento global, as garotas se auto-intitulam DJs lentas. "Nós tocamos num volume que permite às pessoas conversarem. E cozinhamos também, lançando odores no ar que estimulam a criatividade. As músicas rolam numa velocidade muito menor do que estamos acostumados. No nosso set, tudo é 'fresco', feito a mão, da manteiga aos sons", conta Cassis. Ser devagar é "cool" ou não é?

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