terça-feira, 11 de março de 2008

Decepção e reparação, por Ignácio de Loyola Brandão. Estado de S. Paulo, 07/03/2008

Decepção e reparação

Ignácio de Loyola Brandão
07/03/2008

imprimir enviar
O Estado de S. Paulo – 7/3/2008Semana passada, por 24 horas, o prefeito Gilberto Kassab perdeu meu voto e meu provável apoio. Quero dizer que gosto dele como prefeito. Só a Lei Cidade Limpa que despoluiu visualmente a cidade, tornando-a menos feia, já foi um grande feito. Por alguns momentos ele me deixou, como escritor e brasileiro, profundamente decepcionado. Ligou-me um repórter da Jovem Pan, de nome Wellington, pedindo minha opinião sobre o decreto do prefeito que extinguia quatro bibliotecas públicas na cidade. Respondi que não sabia disso. E o repórter: "Conversei com o secretário Calil que me disse ter sido essa uma sugestão do Conselho Municipal de Bibliotecas ao qual o senhor pertence." Sim, fui chamado para esse Conselho, mas jamais me convocaram ou me avisaram de uma única reunião. Portanto, se houve uma decisão desse Conselho, foi à minha revelia, pelas minhas costas. Não tem minha assinatura tal decisão, jamais a tomaria, declarei.Na entrevista, deplorei profundamente a atitude de Kassab. Em um Brasil sem bibliotecas, o que precisamos é abrir muitas, é torná-las dinâmicas, modificando o funcionamento, atraindo freqüentadores. Num país em que o livro é caro, a biblioteca é fundamental, é ponto de apoio e principalmente de partida. Wellington me contou que o secretário Caiu teria argumentado que a biblioteca de Vila Mariana está localizada em um buraco e é freqüentada por "uns poucos gatos". Não ouvi a declaração, repasso como o radialista me contou. Mas tudo é possível.Não passou pela cabeça do prefeito e do seu secretário que em lugar de fechar o melhor seriam reformas, mudança de lugar, modificação da maneira de trabalhar? Bibliotecas não podem ser passivas, precisam ser ativas, promover coisas, tornarem-se atraentes, interessantes. Há no Brasil uma enorme incompreensão em relação a elas. Viajo e o que vejo, quando existe a biblioteca (prestem atenção, quando existe) me estarrece. Em geral, enviam para elas velhos funcionários às vésperas da aposentaria. Lugar de encosto. Gente que só espera cumprir tempo de serviço e fica ali sentada atendendo com má vontade, mandando crianças ficarem quietas, reprimindo. Uma vez, em Campo Grande, numa escola em que meus filhos estudavam, a biblioteca era o lugar de castigo. Punia-se trancando o aluno na biblioteca. Ou seja, criava-se uma relação de desgosto. Quando se deve criar amor.Outra vez, em uma cidade de Minas Gerais, fui à biblioteca e perguntei à funcionária que me atendeu: quantos livros tem o acervo? O que, acervo? O que é isso? Quantos livros tem na biblioteca? Não sei. Sabe se tem algum livro meu? Quem é o senhor? Disse meu nome. Procura por aí. Está pela ordem alfabética do título ou do autor? Não sei. A senhora não é a bibliotecária? Não, sou a faxineira e fico tomando conta quando a bibliotecária vai almoçar, ou tem de ir ao médico, ou tem de falar com o prefeito, ou vai ao cabeleireiro, ou vai fazer compras. Em cada biblioteca que passo, pergunto: qual é o critério para a compra de livros? Em 90% dos lugares, respondem-me: quando há verba, recorremos à lista da Veja para saber o que o público quer. Parece-me um raciocínio perverso, porque raramente os melhores e os bons livros estão nas páginas da Veja. Perceberam o detalhe? Quando há verbas.Já tivemos alguns programas interessantes em relação às bibliotecas em São Paulo. Um ‘deles foi O Escritor na Biblioteca. Íamos falar para estudantes, batíamos papo, respondíamos as perguntas. Íamos, ainda que ganhando muito mal. Agitávamos o bairro. Em geral, eu escolhia locais mais distantes e encontrava funcionários incríveis, felizes com o evento (não gosto desta palavra). Nunca me esqueço uma tarde em Campo Limpo, horas e horas de perguntas. Houve também um encontro na Biblioteca de Santana. A diretora, ativa, tinha feito intenso trabalho de divulgação e de arregimentação, alunos surgiram de todos os lados. Não cabíamos na biblioteca. A diretora teve uma idéia. Fomos para a praça Tenório de Aguiar, levamos a mesa, o sistema de som, os alunos sentaram-se no meio-fio, embaixo das árvores. Todos felizes. Quase uma tarde inteira de fala e respostas. Os vizinhos saíam na calçada, mulheres traziam café, uma veio com bolinhos de chuva. Passou um ônibus, parou, os passageiros puseram as caras fora da janela. A TV Bandeirantes foi cobrir. Um encontro inesquecível. Aposto que também ficou na memória daqueles jovens.Bem, voltemos ao fechamento das quatro unidades. No dia seguinte, o assunto do fechamento de bibliotecas foi o tema da reunião da Academia Paulista de Letras, com indignação geral e a aprovação de uma carta de protesto ao prefeito. Logo depois, soubemos. Kassab, que vem deu ma família de boa linhagem intelectual, afinal seu pai foi diretor de uma das melhores escolas desta cidade, o Liceu Pasteur, revogou o decreto. Descancelou. Parece que as bibliotecas continuarão. Um homem que volta atrás tem dignidade, mostra integridade. Gostaríamos que ele não só não fechasse nada, como abrisse mais bibliotecas. Que destine verbas e contrate pessoal. Que monte um projeto de modernização que avance no setor. Vejo pela cidade empresas responsáveis pela conservação de praças. Por que não conseguir empresas que se responsabilizem pela conservação de bibliotecas?

Nenhum comentário: