Resenha, feita por Luciana Rodrigues, de texto de autoria de CELSO J. FERRETTI, DAGMAR M. L. ZIBAS e GISELA LOBO B. P. TARTUCE publicado no Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 122, p. 411-423, maio/ago. 2004.
O tema PROTAGONISMO JUVENIL pode-se prestar às mais diversas interpretações por ser“reconhecidamente fluído e multifacetado, carregado de significado pedagógico e político, o que o torna um potencial catalisador de conflitos e, portanto, um fértil objeto de estudo” nas palavras dos autores. Por isso algumas definições se tornam fundamentais para aplicarmos às questões práticas, como a reforma curricular do ensino médio, e é essa a preocupação manifestada pelos autores, membros do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas em um artigo derivado de uma pesquisa financiada pela Organização dos Estados Ibero-Americanos – OEI –, que focalizou a reforma do ensino médio mediante estudos de caso realizados em cinco escolas de dois estados, São Paulo e Ceará.
Para facilitar a compreensão do tema os autores traçam um panorama histórico sobre a questão. Nas décadas de 1920 e 1930 do século passado diversos teóricos da educação adotaram o pensamento de Dewey no discurso da participação estudantil. Desde a década de 1960 aS emergentes mobilizações dos estudantes se deram via instituições como grêmios estudantis. Houve, também, a criação dos conselhos escolares (em alguns locais desde a década de 1980), que agregava alunos a pais e mestres.
Todavia foi principalmente a partir dos anos de 1990 que se oficializou um interesse estatal na valorização da participação juvenil nas unidades escolares, como forma de democratizar suas gestões e torna-las locais atrativos para jovens crescerem como indivíduos e cidadãos, se inserindo social e culturalmente. As escolas passaram a ser vistas como espaços de intercâmbio, democráticos, ricos e confiáveis à comunidade, nela incluídos os pais. Nesse contexto, de interesse público, é que surge o termo protagonismo.
Os autores chamam a atenção que sempre são os jovens os “protagonistas” nos documentos oficiais, raramente os seus pais, tratados como simples partícipes desse processo. Ao concentrar todo
o protagonismo nos jovens/alunos, como proposto pelos documentos da reforma do ensino, e veiculado por diversos autores, ignorou-se certos fenômenos contemporâneos, que estão mutuamente imbricados, criticam os três autores: “Desenhando-se no decorrer da segunda metade do século XX, eles se afirmam no século XXI: as transformações sociais e culturais que configuram as chamadas sociedades pós-modernas ou pós-industriais, as profundas mudanças que ocorrem no campo do trabalho”
As mudanças substanciais ocorridas no processo de trabalho, que afetaram profundamente toda a sociedade e suas crenças ideológicas, sobre o trabalho, escola e vida, que parecem historicamente distantes das vivências dos jovens e adolescentes de hoje, certamente acabam por ser experimentadas por eles como novas, como o desemprego de amigos e familiares. Paralelamente surgem outras experiências inéditas, como o contato com a informática, que acabam por criar novas formas dentitárias e comportamentais, que não podem ser ignoradas por qualquer estudo sobre o tema.
Essas situações combinadas, salientam, acabam por gerar a urgência da criação de meios que, sistematicamente, permitam a formação de consciência e fomentem atuações cidadãs nesses jovens, a fim de se tornarem sujeitos no mundo contemporâneo, em uma “moderna cidadania”, que não só responda a exigências sociais mas, sobretudo, as angústias geracionais diante do contexto pós- moderno de efemeridades, desafios e novas configurações de trabalho.Essa seria uma forma de enxergar o protagonismo: como uma via que permite responder a essa urgências.
Todavia vê-lo dessa forma não encerra a definição do termo “protagonismo”. Ele continua a se prestar a diversas interpretações, sendo constantemente confundido com “participação” (usada muitas vezes como sinônimo), “responsabilidade social”, “identidade” e “autonomia”.
Os autores notam que o termo “participação” é usado muitas vezes em um conceito mais amplo como se “protagonismo” se referisse a uma atitude pessoal em detrimento de uma coletiva.
A despeito de como a literatura lida com os diferentes termos e suas vertentes o fato é que as obras parecem compartilhar do uso da expressão “ação cidadã” como forma de “nomear e discutir o envolvimento de jovens em seu contexto escolar, social e/ou político” nas palavras dos autores do texto. Também há mais um ponto em comum: a negação de que o protagonismo seja confundido com um discurso de prevenção quanto ao que seriam comportamentos típicos indesejáveis dos adolescentes, tais como drogas e gravidezes precoces, entre outros.
Poucos são os autores que ligam o protagonismo com a educação formal, como Gomes da Costa. O protagonismo, para esse estudioso, baseado em uma pedagogia ativa, seria a dos adolescentes participando de forma a enfrentar situações reais não só na comunidade e na vida social, mas na própria escola. Os autores notam que essa visão minimiza a dimensão do ensino e restringe o professor ao papel de orientação para o ator principal do processo, o aluno, que seria a fonte da iniciativa, da liberdade e da responsabilidade.
Ainda no foco da educação os autores Escaméz e Gil, que publicaram La Educación en la Responsabilidad, expressam quatro convicções: 1- todos têm dignidade e valor inestimável, podendo tornar-se autônomos e, como tal, assumir responsabilidades diante das contingências históricas; 2- o futuro não está pré- determinado, pois os caminhos da vida material, social e cultural são construções históricas e cada um é pessoalmente responsável por suas escolhas e decisões; 3- Todas as nossas escolhas afetam a nós e aos demais, então devemos assumir compromissos vitais como os outros, principalmente pelos fracos, excluídos e natureza; 4- Os estudantes devem ser educados para que exerçam uma cidadania responsável.
Isso esclarece vários aspectos do que para os autores seria o protagonismo juvenil.
Não há como negar que esses pressupostos são fundamentais para qualquer processo educacional que vise a formação de um ser humano pleno, entretanto, alertam os três articulistas, a maioria das teorias em torno do tema tem visões de homogeneidade cultural e homogeneidade etária:
Tanto uma quanto outra inferência parecem pouco compatíveis com o que se pode observar empiricamente, pois, se há características comuns entre todos os jovens de diferentes sociedades, é preciso atentar para a imensa variação de condições de vida, de trabalho, de educação, de poder aquisitivo, bem como para os diferentes valores, costumes, crenças etc., possíveis de serem encontrados não apenas entre jovens de diferentes sociedades, mas também no interior da maioria delas. Tais heterogeneidades obrigam a admitir que, da mesma forma que não se pode generalizar as chamadas mudanças inerentes à “era pós- industrial” para toda e qualquer sociedade ou para todos os segmentos de uma mesma sociedade, também não faz sentido pensar a adolescência ou a juventude como únicas e homogêneas. (FERRETTI, ZIBAS e TARTUCE: 2004)
Eles questionam como podemos discutir a relação entre protagonismo e educação tratando os termos de forma genérica e abstrata, e fazem um alerta: sem ancoragem nas materialidades históricas pode-se facilmente descambar para idealizações, simplificações ou confusões sobre os sujeitos individuais e sociais e sobre as ações a eles relacionadas, como se nota na literatura que analisam, exceto no que concerne o conceito de RESILIÊNCIA.
Em Barrietos e Lascano e em Gomes da Costa o termo resiliência é explicitado, estando subtendido nos demais. Explicam os autores;
Resiliência” significa a capacidade de pessoas resistirem à adversidade, valendo-se da experiência assim adquirida para construir novas habilidades e comportamentos que lhes permitam sobrepor-se às condições adversas e alcançar melhor qualidade de vida. O conceito se aplica a
ações que visam o combate à pobreza, tendo por alvo principalmente as crianças e suas mães. (FERRETTI, ZIBAS e TARTUCE: 2004)
O cerne do protagonismo juvenil estaria na resiliência dos adolescentes e jovens pobres para superarem as adversidades vividas por eles e seus familiares e na sensibilização e ação de jovens de classe média em relação a setores desfavorecidos da sociedade.
Se para esses últimos, porém, não se aplica o conceito de resiliência, qual o protagonismo caberia a eles, tão distantes das vivências sociais, econômicas e culturais dos setores empobrecidos? Eles deveriam ser conquistados, sensibilizados, para realizarem ações sociais?
Nessa perspectiva os pesquisadores informam e alertam:
Esse enfoque alinha-se às proposições da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal (1992), segundo as quais a formação de todos os jovens (e não só dos trabalhadores para os setores de ponta) deveria contemplar as competências necessárias para que se pudessem defrontar com a face “inescapável” e perversa da “irreversível” transformação da economia capitalista, agora hegemônica, assim como com o também “irreversível” advento das sociedades pós-industriais. Daí a proposição da “moderna cidadania”, tendo em vista um capitalismo “mais humano”, no qual a eqüidade e a democracia sobrepor-se-iam à exploração – ou à “competitividade espúria”, como denominada eufemisticamente no documento da Cepal –, em nome do desenvolvimento sustentado (Ferretti, 2003). Essa forma de encarar e promover a participação de jovens e adolescentes abre, potencialmente, perspectivas para ações solidárias e meritórias diante das necessidades imediatas da população e dos próprios jovens. Entretanto, carrega consigo a possibilidade de despolitizar o olhar sobre as determinações da pobreza e sua manutenção, desviando o foco das preocupações do debate político e social sobre tais determinações para o da ação individual ou coletiva, com vistas a minorar, de modo funcionalista, “os aspectos negativos do pós-industrialismo”, designação eufêmica para os desdobramentos sociais e econômicos da atual fase do capitalismo mundial. Nesse sentido, apesar do teor de questionamento das decorrências negativas do “pós-industrialismo”, o protagonismo pode encaminhar a promoção de valores, crenças, ações etc. de caráter mais adaptativo que problematizador. (FERRETTI, ZIBAS e TARTUCE: 2004)
Essa visão assume ares de simples assimilação, conceito que parece vir de encontro a qualquer tipo de protagonismo, além de transferir para a sociedade civil responsabilidades que deveriam ser do Estado, o que os autores consideram uma situação perversa e dispersiva, aonde caberia a grupos e indivíduos atuarem em defesa de seus microinteresses, significando o fim da política “e portanto, o fim da democracia”.
Então o protagonismo ou a participação social, ligados as ações de grupos religiosos, comunitários, ONGs, estariam não necessariamente orientados pelo local de atuação, mas pelos objetivos e formas de ação.
Essa “cidadania coletiva” a que se refere Gomes da Costa seria a dos movimentos sociais identitários, atuando em defesa dos interesses das categorias sociais historicamente excluídas. A escola seria importante ponto de irradiação e exercício do protagonismo juvenil.
Nos elementos centrais das DCNEM- Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, se encontram vários dos conceitos hasteados pelos autores, principalmente na parte da educação para a cidadania, sendo o Humanismo o componente principal de aproximação com o protagonismo. Esse humanismo, alicerce da reforma, seria a forma de evitar o esgarçamento social gerado pelo pós- industrialismo e seus efeitos.
A aprendizagem humanista propicia que os estudantes se constituam como sujeitos autônomos, prontos para as mudanças e com práticas solidárias que visem a superação da segmentação social. Nessa fé de que os alunos possam realizar essas transformações, destacam os autores, repousa, mais uma vez, o conceito de resiliência, em uma afinidade entre o documento DCNEM e a literatura estudada, tendo o “paradigma do desenvolvimento humano” como referência para o protagonismo juvenil.
Para concluir os autores notam que os conceitos de que trata essa literatura foram tantas vezes retrabalhados e recontextualizados, em um “inferno semântico” que estudos e críticas se tornam muito difíceis.
No caso do protagonismo, como vimos, os discursos dos diversos autores estudados e dos documentos oficiais advogam, de um lado – tal como faz a maioria dos educadores –, a necessidade de desenvolvimento do ser humano completo, para além das necessidades da produção, aberto à diversidade cultural de seu tempo e às responsabilidade sociais. A defesa dos métodos ativos, da contextualização dos conteúdos disciplinares e de um certo nível de integração de tais conteúdos, de modo que façam sentido para os jovens, também podem aproximar esses discursos dos objetivos de educadores progressistas.
Por outro lado, os mesmos discursos afirmam a irreversibilidade dos “efeitos negativos da era pós-industrial”, orientam a despolitização da participação juvenil e fazem um apelo à adaptação à nova ordem mundial e à superação individual da segmentação social. Para diversos analistas, é essa face conservadora e economicista do discurso do protagonismo que prevalece nas diretrizes curriculares. . (FERRETTI, ZIBAS e TARTUCE: 2004)
O que fazer, então? É atuar para que o protagonismo juvenil não seja esvaziado frente a essa quantidade de discursos e definições, passando a ser (mais ) uma palavra de ordem ao vento. Cabe a nós, educadores, pesquisadores, especialistas, ao contribuir para o protagonismo juvenil, estando atentos e combatendo distorções e armadilhas, como o da assimilação acrítica e meramente compensatória do ativismo ou da simples adaptação dos jovens às cruéis condições socioeconômica em que vivem.
Bibliografia utilizada por FERRETTI, ZIBAS e TARTUCE em seu trabalho:
BARRIENTOS, G.R.; LASCANO, R.E. Informe sobre “protagonismo infantil”. Fortaleza, 2000.
Disponível em:
2003.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio. Brasília, 1998.
COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE. Orealc. Educación y
conocimiento: eje de la transformación productiva com equidad. Santiago de Chile, 1992.
COSTA, A. C. G. Tempo de servir: o protagonismo juvenil passo a passo; um guia para o
educador. Belo Horizonte: Universidade, 2001.
ESCÁMEZ, J.; GIL, R. O Protagonismo na educação. Porto Alegre: Artmed, 2003.
FERRETTI, C. J. A Reforma do ensino médio: uma crítica em três níveis. Revista Linguagens,
Educação e Sociedade. Teresina: UFPI, n.9, p.41-49, jan./dez.2003.
FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. Educar o trabalhador cidadão produtivo ou o ser humano
emancipado? São Paulo: IIEP – Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas, 2002. (mimeo)
GUEHENNO, J. M. O Fim da democracia. São Paulo: Bertrand Brasil, 1994.
KONTERLINIK, I. La Participación de los adolescentes: exorcismo o construcción de
ciudadania? Disponível em:
NOVAES, R. Juventude e participação social: apontamentos sobre a reinvenção da política.
In: ABRAMO, H.W.; FREITAS, M.V; SPOSITO, M.P. (orgs.) Juventude em debate. São Paulo:
Cortez, 2000. p.46-69.
SHIROMA, E. O.; CAMPOS, R. F. Qualificação e reestruturação produtiva: um balanço das
pesquisas em educação. Educação e Sociedade. Campinas, v.18, n.61, p.13-35, dez.1997.
[número especial.]
TIRAMONTI, G. Modernización Educativa de los 90. Buenos Aires: Flacso; Temas Grupo
Editorial, 2001.
ZIBAS, D. M. L. (coord.); FERRETTI, C. J.; TARTUCE, G. L. B. P. O Protagonismo de alunos
e pais no ensino médio: cinco estudos de caso. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário